segunda-feira, setembro 26, 2011

Homens dificultam registro

Legislação brasileira determina que cartórios indiquem à Justiça o nome do suposto pai da criança

Indispensável ao reconhecimento da existência do cidadão pelo Estado, o registro civil de nascimento está longe de ser universalizado, pelo menos no Ceará, onde o último censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2007, indicou que perto de 20% da população não dispunha do documento. Mesmo com a previsão de decréscimo nesse índice nos dias atuais, estudos apontam que a questão permanece preocupante, e, dentre os diversos fatores, um se sobressai aos demais: a resistência dos homens em assumirem legalmente seus filhos.

O levantamento coordenado pela Comissão Estadual para Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento, em 2006, em 149 municípios e com a participação dos agentes comunitários de saúde, indica que, no universo de crianças cearenses sem registro, 18,9% se encontram na faixa etária de seis a 12 anos. A pesquisa também mostra que a falta de reconhecimento da paternidade é a principal razão apontada pelas famílias para não registrar a criança (24,5% dos entrevistados).

Os percentuais encontrados, conclui o próprio estudo, denotam um desconhecimento das mães sobre a possibilidade de registrar a crianças somente com seu nome e indicar no cartório o suposto pai para que seja realizada a investigação da paternidade, por meio de uma comunicação à Justiça.

A realização do teste de DNA no Estado é feito no Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen). De acordo com o diretor geral do Lacen, Ricardo Cavalcante Sá, de janeiro de 2009 até o mês passado, foram realizados gratuitamente 7.492 testes de paternidade.

O registro é o documento básico para que um cidadão tenha acesso às políticas públicas. Para se ter uma ideia da dimensão de sua importância, basta lembrar que, sem ele, uma criança não é matriculada na escola e, certamente, enfrentará severas dificuldades para ser atendido nos postos de saúde pública.

"A oferta do teste de DNA tem um largo alcance social", frisa o diretor do Lacen. Já o chefe de Divisão de Biologia Médica do Laboratório Central, José Napoleão da Cruz, cita que, na rede privada, o teste custa, em média, R$ 600,00, o que inviabiliza o acesso a esse recurso às mulheres de baixa renda.

Constrangimento

Contudo, é comum uma mulher protelar, às vezes até durante anos, a decisão de registrar sozinha uma criança com o objetivo de evitar constrangimento, pressionar ou conscientizar o pai a colocar seu nome no registro civil de nascimento do filho, diz a pediatra Francisca Maria Andrade, especialista em programas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Ceará. Conhecida como Tati Andrade, a médica acrescenta: "elas querem, ainda, evitar que a criança seja considerada filha de mãe solteira".

Apesar dos esforços dos governos estaduais para reduzir o sub-registro de nascimentos no País, em ações conjuntas com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, ainda preocupa o número de crianças, adolescentes, adultos e idosos que não foram registrados, informa Sandra Maria Bezerra Luna, orientadora da Célula de Proteção Social Básica da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS).

Ela concorda que no Ceará as dificuldades para o reconhecimento da paternidade agravam a questão, e lembra que o último censo do IBGE apontou o Norte e Nordeste como as regiões de maior índice de sub-registro civil. São classificadas nessa situação as crianças que não foram registradas até o primeiro trimestre do ano subsequente ao nascimento, conforme o conceito do IBGE, cita. Adianta que as pesquisas destacam, também, entre os motivos para o sub-registro o desconhecimento da população quanto à gratuidade do documento e os entraves para deslocamentos até os cartórios das comarcas para residentes em localidades mais distantes da zona rural.

A orientação é que, ao nascer, a mãe registre o filho mesmo sem o nome do pai, diz o presidente da Associação dos Notários e Registradores do Estado do Ceará (Anoreg-CE), Alexandre Magno Alencar. Ele garante que, conforme determina a lei 8.560/92, na mesma hora, o cartório encaminha a questão à Defensoria Pública, a fim de ser iniciado processo de reconhecimento da paternidade. "É desconhecido no Estado o número de crianças com registro de nascimento sem a indicação do nome do pai", observa.

Na Capital, os Conselhos Tutelares da Infância convivem, quase diariamente, com o drama de mulheres que amargam a recusa dos homens em registrar os filhos. Alzenir Silva, 18 anos, é apenas mais uma e admite que há meses vinha lutando por isso, com a ajuda da conselheira no bairro Dias Macedo, Maria de Fátima Rodrigues. A meta de conseguir colocar o nome do pai no registro de Vinícius, de um ano e oito meses, para que ele pudesse ser atendido nos postos de saúde foi alcançada.

NEGOCIAÇÃO

Pais dão desculpas para não assumir

Ver a alegria e a satisfação de crianças e adolescentes quando seus pais resolvem registrá-los é a maior gratificação sentida pelas longas esperas e pelejas tão comuns na luta pelo reconhecimento da paternidade, ressalta a conselheira tutelar em Fortaleza, Maria de Fátima Rodrigues, conhecida no bairro Dias Macedo como Fafá.

Segundo ela, no acompanhamento de casos pelo reconhecimento da paternidade em registros de nascimento, a postura, inicialmente, adotada pelos conselheiros é de negociação. "A gente tenta convencer o pai sobre a importância do registro de nascimento para a criança", disse, adiantando que são chamados para as audiências no Conselho Tutelar a mãe e o pai. "O objetivo é averiguar a situação e resolver o problema", ressalta.

Fafá ressalta que os homens costumam dar as mais variadas desculpas para não assumir a paternidade. "Alguns chegam a dizer que não registraram ainda porque não têm certeza de que o filho é mesmo dele". Ao questionamento, Fafá via de regra responde: "não há problema, a gente providencia o teste de DNA, mas depois entra na Justiça pedindo a pensão alimentícia de forma retroativa. Aí, muitos desistem de duvidar da mãe e registram a criança".

TRISTEZA

Adolescente luta para ser reconhecido

"Ele tem o dever de me reconhecer, eu não nasci do Divino Espírito Santo". A frase é do adolescente Jonas Albano, 14 anos, que há anos luta para que o pai decida registrá-lo. Tristeza, revolta e ansiedade são visíveis no olhar, em cada gesto, cada palavra de Jonas, que ora demonstra gostar do pai, ora transmite mágoa pelo fato de ele ter transferido à sua mãe a tarefa de criá-lo e registrá-lo sozinha.

O caso do adolescente é apenas mais um dentre os vários de reconhecimento de paternidade que chegam ao Conselho Tutelar do Bairro Dias Macedo e que mobiliza os conselheiros em várias tentativas de negociação junto aos pais para que eles ponham seu nome no registro de nascimentos dos filhos.

Jonas conta que o pai já morou com sua mãe quando ele era criança. Deste período, as recordações mais frequentes são relativas às brigas do casal e à "cachaça que ele bebia".

Apesar de reclamar também da omissão financeira do pai, que vive de "bicos", o garoto comenta: "queria que ele me registrasse, só isso! Ele sabe que o filho é dele e não de outro". Estudante de escola pública cursando o oitavo ano do Ensino Fundamental, Jonas admite que nunca um colega seu fez algum tipo de gozação por ele não ser registrado pelo pai.

Contudo, enfatiza sentir vergonha de não ter o reconhecimento paterno. "Todo mundo tem o nome do pai no registro. Eu também tenho esse direito", diz, confessando que costuma ficar triste no Dia dos Pais.

A opinião do especialista

Construção da cidadania

O primeiro passo para sermos cidadãos é termos o nosso registro civil de nascimento. Garantir o direito ao nome e à identidade é a base da construção da cidadania. A certidão de nascimento, que prova esse registro, é o primeiro documento de uma pessoa. Todos os demais direitos passam a depender do registro civil: vida e saúde; educação e cultura; esporte e lazer; trabalho e previdência, liberdade individual e dignidade, convivência familiar; assistência social e integração comunitária; segurança alimentar; entre outros.

A carteira de trabalho, a carteira de identidade, o título de eleitor, o CPF (Cadastro de Pessoa Física) e benefícios sociais dependem desse documento. Por exemplo, como provar a idade ou a filiação de alguém para que ela possa receber algum benefício? Só com a certidão desse registro de nascimento é possível tirar outros documentos e garantir os direitos e vantagens. Assim, quanto mais cedo se registrar o nascimento de uma criança melhor, pois ele ou ela será um (a) verdadeiro (a) cidadão (ã) e sujeito de direitos. Este direito tão básico, muitas vezes, é pouco valorizado pela população, que não consegue ver a sua importância real.

Segundo um levantamento feito em 149 municípios cearenses, em 2006, pelos agentes de saúde do Ceará, com apoio do Unicef, cerca de 9.400 crianças e adolescentes não tinham sido registradas até a data do estudo. A falta de reconhecimento da paternidade foi a principal razão apontada pelas famílias para não ter registrado a criança. Isso, possivelmente, indica um desconhecimento das mães sobre a possibilidade de registrar a criança somente com seu nome e informar no cartório o nome do suposto pai para que seja feita a investigação da paternidade. Esse fato mostrou a necessidade de campanhas educativas sobre os direitos das mulheres e dos seus filhos e os procedimentos que garantam o reconhecimento da paternidade, inclusive a realização do teste de DNA. O governo estadual, por meio da secretaria de saúde, oferece hoje este teste gratuitamente às famílias.

* Pediatra e especialista em programas do Unicef



Fonte: Diário do Nordeste

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