quarta-feira, março 24, 2010

Primeira escrivã do cartório de Formosa conta os segredos de 105 aniversários

Entrar na casa de Maria Augusto Lobo é como estabelecer contato consigo mesmo. E a pergunta se torna inevitável: o que fizemos ou estamos fazendo da nossa própria vida? Ali, naquele mesmo lugar há mais de 80 anos, habita uma mulher que cravou um pacto com o tempo e com o melhor que ele pode oferecer. Pra começar, esqueçam de vez o nome dela. É muito sisudo. E ela, definitivamente, nada tem de austera. Maria Augusta não combina com essa mulher de cabelos prateados, sorriso destemido, olhar que entra na alma de quem está diante dela e mãos enrugadas que afagam. Chamem-na apenas de dona Sinhá, como ela sempre ouviu ser chamada. Ou, sem rodeios, Sinhá. Esta, sim, é a sonoridade do afeto. O nome que amou, embalou, acolheu, viveu, chorou, sorriu, aconselhou. E que quer viver. Ainda muito. Dona Sinhá deseja comungar todos os domingos.




Na parede da sala de visita, Sinhá tem companhia no retrato de seu marido Jonas. "O único homem que amei"
Na segunda-feira passada, ela completou 105 anos. Está escrito corretamente. Cento e cinco marços. Uma vida inteira dedicada a fazer o bem. Insistir para que outros tivessem dignidade. E isso vem de longe, desde os tempos em que, na cela de um cavalo, ela corria a redondeza de Goiás para fazer casamentos. Ensinar as letras a quem não sabia que letras davam cidadania. Sinhá foi a primeira escrivã de Formosa (GO), cidade a 75km de Brasília. A primeira mulher a “trabalhar fora”, mesmo que o Cartório de Registro Civil funcionasse no quarto da frente da casa onde mora desde sempre. É hoje, segundo registros públicos, a mulher mais idosa do entorno goiano.

Sinhá se casou cedo, aos 16 anos. Jonas tinha 20. Juraram amor eterno. Mas o destino não quis que envelhecessem juntos. Aos 35 anos, o homem com quem teve seis filhos e lhe trazia flores da rua (Sinhá adora flores e rosas) morreu de tuberculose. Sinhá chorou choro de amor e dor. Chorou até acreditar que parte dela tinha ido junto. Vestiu-se de preto aos 33 anos. “Ele foi o primeiro e o único homem que amei na vida”, ela diz. Na sala, a foto de Jonas a acompanha com os olhos. “Ele era muito bonito”, diz, saudosa, olhando a imagem pendurada na parede da casa centenária. Pretendentes ricos choveram. Ela rejeitou todos: “Nunca quis padrasto pros meus filhos”.

A vida precisava seguir. Havia seis filhos para educar e matar a fome. Começava o ano de 1938. O juiz da cidade a nomeou escrivã do cartório. Com letra bordada do curso primário do Colégio São José. Na frente da casa, abriu-se o mundo de Sinhá. Ela passou a registrar os nascimentos, as mortes e as mais diversas procurações. Nunca deixou de atender quem não tinha dinheiro para pagar as certidões. Abria as portas às sete da manhã e só fechava quando o último era atendido. “O cartório foi meu segundo marido.”

Os filhos de Sinhá cresceram. Estudaram. Aos domingos, ela carregava todos à missa. A devoção a Nossa Senhora e ao Sagrado Coração de Jesus a curou da dor de perder o marido e da tristeza de se ver, de uma hora para outra, sem o homem que lhe trazia flores para enfeitar a casa. “Acho que a fé fez minha avó viver tanto”, diz a neta Augusta Umbelina Lobo, 52. Dos seis filhos que Sinhá pariu, apenas as filhas estão vivas: Edna, 85, mãe de Augusta Umbelina; Elza, 83, e Eleusa, 78. A família cresceu. “São 25 netos, 53 bisnetos, 15 tataranetos e dois a caminho”, contabiliza Augusta, que herdou o nome da avó.

Um bom cálice

Segunda-feira, 16h40. O Correio voltou à casa de Sinhá, na goiana Formosa. Há três anos, a mesma equipe esteve ali para contar a história dos seus 102 anos. Àquela hora da tarde, ela lanchava. Tomava um copo de suco de cajá-manga. E comia uma empadinha de frango. Ao encontrar o repórter, disse: “Estou zangada com você. Queria te dar umas palmadas. Você prometeu que voltaria pra comer uma costelinha de porco assada e nunca voltou. Demorou três anos pra aparecer de novo, né?”.

E abriu um sorriso tão bonito que enfeitiça quem é contemplado por ele. Aos 105 anos, Sinhá come de tudo. Só há um segredo. Sempre comeu pouco. Adora carne de porco. E não dispensa, um dia sequer, um cálice de vinho antes do almoço. “O doutor Sebastião (médico dela há 48 anos) me disse que faz bem ao coração. Eu acreditei”, diz, às gargalhadas. E houve um tempo em que ela não dispensava o churrasquinho da pracinha e um copo de cerveja geladinha, para acompanhar o churrasquinho. “Vovó, não era cerveja preta?”, indaga Augusta. “Que preta, minha filha! Era cerveja comum.”

Diabetes? Sinhá nem sabe o que é. Hipertensão? Palavrão. Tem pressão de menina-moça. Lê sem óculos. E até hoje, quando alguém tem problema, corre para o colo dela. “É nossa conselheira, para assuntos de trabalho, relação familiar e coisas de amor”, entrega a neta, a historiadora Lenita Lobo, viúva de 57 anos, três filhos. Sinhá devolve: “É bom a gente ter alguma utilidade na vida, né, meu filho?”.

A prosa continua na sala, com Jonas, na parede, assistindo à conversa. Sinhá fala dela e de um passado que só ela sentiu e viveu. Lembranças muito pessoais. A certa altura, ela mesma se espanta: “Tô com essa idade toda e não caduco. Acho que Deus quis assim”. Edna, a filha mais velha, não se lembra do telefone do encanador. Sinhá sabe de cor. E corrige a filha numa ou outra história: “Não, Edna, não é bem assim. Tá faltando aquela parte”. Edna sabe, sempre soube, que a mãe tem razão. A memória de Sinhá impressiona essa gente de jaleco branco.

De uns tempos pra cá, depois de uma queda no quintal, as pernas de Sinhá ficaram meio fracas. Deixou de ir à missa, mas a comunhão vai até ela. “Eu ia visitar Jesus. Hoje, ele vem à minha casa”, agradece. “É muito emocionante. Ela reza com fé. E só agradece”, conta a ministra da eucaristia Daniela Ribas, de 39 anos. Todo domingo, faça sol ou chuva, ela vai ao encontro da centenária mais conhecida da cidade.

Ao fim da conversa — passava das 19h —, de tanto ver aquela mulher esbanjar vida, digo-lhe que realmente ela é bonita. Ela fita a visita e devolve: “Você tá ruim da vista, meu filho”. Gargalhada geral. Na despedida, cheia de ternura e com um sorriso que quase faz o visitante ficar mais um pouco, ela pede: “Não passe mais três anos sem vir aqui, não”.

No primeiro encontro, em março de 2007, quando ela contava 102 anos, Sinhá resumiu bem a vida: “A gente é quem faz ela (a vida) ser boa ou ruim. Só depende da gente saber viver”. Sinhá sempre sabe o que diz. Foi assim a vida inteirinha. É de uma sabedoria comovente. Escutá-la é como renascer. E conhecê-la é ter a certeza de que a humanidade ainda vale a pena. Parabéns, Sinhá!

Fonte: Jornal Correio Braziliense

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