segunda-feira, junho 21, 2010

"Causa desconhecida'' vira epidemia e mata mais brasileiros que a diabete

Cerca de 80 mil pessoas morrem por ano sem ter a causa da morte identificada, o equivalente a 7,4% dos óbitos do País. Índice elevado expõe imprecisão na coleta de dados, dificultando definição de políticas públicas para prevenção e mapeamento de doenças

O nome da cidade sugere que perto dela passa um rio. Nos cadastros da área de saúde, o município de Várzea da Roça - tão parecido com outros do sertão nordestino - se destaca por um dos mais altos índices de mortes por "causa desconhecida" no Brasil. O dado oficial mais recente registra 73% dos óbitos do município nessa categoria - quase dez vezes a taxa nacional, de 7,4%. "Motivos ignorados" ou "indefinidos" ainda são a quinta maior causa de mortes no País, à frente de doenças endócrinas e metabólicas como a diabete.

O lavrador Manoel Fonseca da Silva engrossa a estatística. Ele morreu em dezembro do ano passado, e a certidão de óbito anota como causa a palavra "ignorada". A viúva, Luiza, lembra de um primeiro diagnóstico de problemas no joelho, tratado sem resultado. Quando os médicos acertaram o diagnóstico de câncer no marido, o único remédio foi a morfina.

Manoel morreu em casa, e não havia médico por perto para dizer o porquê. Na presença de testemunhas, o cartório emitiu a declaração de óbito, mas deixou em branco o local reservado a descrever a causa da morte.

"Falar de morte é sempre muito complicado", observa a enfermeira Sandra Maia Carneiro Santos, encarregada de investigar parte dos casos do município, localizado a pouco mais de 300 quilômetros de Salvador. É um trabalho de detetive. As fichas que preencheu na quinta-feira em conversas com famílias de mortos vão ajudar a melhorar a qualidade dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, o SIM.

A busca por precisão nos cadastro sobre causas de mortes não é capricho de burocrata, mas pré-requisito para definir políticas públicas adequadas na área de saúde. Em Várzea da Roça, por exemplo, a secretária Patrícia Ferreira Araújo está assustada com a quantidade de casos de câncer que ainda não aparece nas estatísticas de mortes e deveria determinar uma atenção maior ao diagnóstico precoce da doença. Por ora, a principal causa de morte na cidade, é a tal "causa desconhecida".

Metas. O Ministério da Saúde tem como meta informal reduzir o porcentual de mortes com causa mal definida a 5%.

No Nordeste, só a Bahia ainda não cumpriu a meta estabelecida para 2008: reduzir a menos de 10% as mortes por causas mal definidas. Na Região Norte, a situação é mais complicada, ainda que distante da situação de 15 anos atrás, quando seis Estados tinham mais de 30% das mortes sem causa definida. Na época, a Paraíba não identificava a causa em mais de metade dos óbitos.

A redução do problema nos últimos anos já mexeu no ranking das principais causas de mortes no País. Em 2004, as causas mal definidas eram a quarta principal causa no Brasil - atrás somente das doenças do aparelho circulatório, dos cânceres e de causas chamadas de externas.

No ranking nacional mais recente, as mal definidas caíram para o quinto lugar, com quase 80 mil casos ocorridos em 2008 e cuja causa ainda não foi identificada. Nesse ano foram registradas pouco mais de 1 milhão de mortes. A expectativa é que cresça a proporção de mortes por doenças do aparelho circulatório e casos de câncer.

Dificuldade para fazer declaração causa falha

Desconhecida, ignorada ou indeterminada. Essas palavras se revezam nas certidões de óbito cujas causas são mal definidas. Antes de uma investigação detalhada, caso a caso, elas podem ser traduzidas sobretudo de duas maneiras: falta de médico ou dificuldades no preenchimento das declarações de óbito pelos profissionais disponíveis. Um caso claro de mau preenchimento complicou a liberação da certidão de óbito de Ernesto Cunha Oliveira, no município de Várzea da Roça (BA), conta a irmã do rapaz, Maria Eleni Ferreira.

Ernesto foi assassinado em fevereiro, aos 28 anos. A declaração de óbito foi preenchida pelo médico perito da cidade mais próxima onde o serviço era disponível. Como motivo da morte, ele anotou a palavra indeterminada . O mesmo perito registrou no documento, de forma inadequada, perfuração por arma de fogo . O caso deveria ter sido contabilizado como morte por causa externa. Agora devem dar como caso encerrado , disse a enfermeira Sandra Santos depois de conversar com a irmã do morto.

Questionado pela reportagem, o Conselho Federal de Medicina (CFM) negou que parte dos médicos seja incapaz de preencher adequadamente os documentos. O atual modelo dos formulários foi implantado há 34 anos. Não há falta de médicos nem incapacidade de se elaborar laudos. O que existe é a má distribuição de profissionais , respondeu o conselheiro José Albertino Souza, corregedor adjunto do CFM. Outro problema é a pequena quantidade de profissionais ou mesmo a ausência de médicos em municípios pequenos e distantes, principalmente no Norte e Nordeste do país , disse.

Na falta de um médico, os documentos são preenchidos pelos cartórios com base na declaração de duas testemunhas. Famílias também podem optar por ir diretamente ao cartório. Nesses casos, a causa da morte aparece como desconhecida, ignorada ou indeterminada.

Erro crasso

Apesar do que diz o conselheiro sobre eventuais erros dos médicos no preenchimento das declarações, cartilha distribuída pelo Ministério da Saúde, com o apoio do próprio CFM, cita casos de preenchimento incorreto do documento. Um erro crasso e uma das formas mais comuns de preenchimento incorreto, segundo a cartilha, é declarar como causa da morte parada cardíaca, respiratória ou cardiorrespiratória, consideradas diagnósticos imprecisos. Outro diagnóstico vago que engrossa as estatísticas das mortes por causa mal definida é a falência múltipla dos órgãos.

A coordenadora de informação e análise epidemiológica do Ministério da Saúde, Vera Barea, observa que nem todas as mortes ocorridas no Brasil chegam aos cadastros oficiais, da mesma forma como ocorre com os nascimentos. A declaração de óbito é uma exigência para o sepultamento em cemitérios oficiais. Mas essa exigência não existe para sepultamentos clandestinos. O dado nacional mais recente, ainda de 2008, registra um milhão de mortes no país. Não há estimativa de sub-registro das mortes.

Mais câncer

De acordo com Vera Barea, as investigações sobre mortes com causas mal definidas, quando concluídas, têm elevado o porcentual das mortes por doenças do aparelho circulatório e por câncer. A maior parte delas aconteceu em casa, longe dos hospitais. O trabalho de investigação começou em 2005, com um projeto-piloto em Sergipe, depois ampliado para todo o Nordeste. Os resultados do trabalho não aparecem na mesma proporção em todos os estados.

A Paraíba foi o estado que mais reduziu o porcentual das mortes por causa mal definida. Era o recordista no país em porcentual de casos registrados em 1995. A taxa, de 50,2% na época, caiu para 8,4%, em 2008. Em números absolutos, São Paulo é o estado com o maior número de casos, seguido por Minas Gerais e Bahia.




Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo

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