Segundo Human Rights Watch, prática prejudica acesso à educação, representa risco à saúde e potencializa chances de violência
Luísa Pécora, iG São Paulo
A
jovem Nujood Ali ganhou notoriedade internacional em 2008 ao tornar-se,
aos 10 anos, a mulher mais nova a se divorciar no Iêmen. Casada em 2007
com um homem de 30 anos, ela foi estuprada e espancada repetidas vezes
até conseguir a separação na Justiça (sob a condição de pagar o
equivalente a R$ 358 ao marido) e tornar-se símbolo de um costume
considerado obstáculo crucial para a vida das mulheres do país: o
casamento infantil.
Um
relatório da organização de direitos humanos Human Rights Watch,
divulgado nesta quinta-feira, afirma que o casamento infantil prejudica o
acesso das mulheres iemenitas à educação, representa riscos à sua
saúde, as mantém como "cidadãs de segunda classe" e potencializa suas
chances de sofrer violência.
O documento de 54 páginas compila diferentes estudos e levantamentos sobre o Iêmen e traz entrevistas com 30 mulheres
que se casaram durante a infância ou adolescência e com representantes
de organizações não governamentais e funcionários do Ministério da
Saúde.
A
pesquisa, realizada entre agosto e setembro de 2010 por Nadya Khalife,
especialista da Human Rights Watch para Oriente Médio e Norte da África,
afirma que o fato de a lei iemenita não prever um limite mínimo de
idade para o casamento faz com que a prática seja extremamente comum
mesmo entre meninas que nem chegaram à puberdade. Dados do governo do
Iêmen e da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgados em 2006
indicam que cerca de 14% das mulheres do país se casam antes dos 15 anos
e 52% antes dos 18.
Nos
relatos ouvidos pela pesquisadora, histórias se repetem: jovens
forçadas pela família a se casar, para logo depois engravidar e deixar
os estudos. Algumas também relatam terem sido estupradas pelo marido ao
se negar a manter relações sexuais.
Um
estudo feito pelo governo em 2003 mostra que 59% das mulheres que vivem
em áreas rurais e 71% das que vivem em regiões urbanas dizem ter sido
agredidas fisicamente por seus maridos. Outro levantamento indica que
74,2% das mulheres que morrem no parto se casaram antes dos 20 anos -
muitas vezes porque seus corpos ainda não estão totalmente preparados
para a gravidez.
De
acordo com a Human Rights Watch, quatro principais razões levam as
famílias do Iêmen a promover o casamento infantil. No país mais pobre do
Oriente Médio, as meninas podem ser vistas como um peso financeiro, e
casá-las significa livrar-se de gastos. Da mesma forma, as jovens também
são um bem econômico, já que o noivo deve pagar um dote (dinheiro ou
presentes) a seus familiares.
Em
terceiro lugar, em sociedades tradicionais como as do Iêmen, a prática
pode ser encarada como uma forma de impedir que as garotas façam sexo
antes do casamento, o que mancharia a reputação de toda a família. Por
fim, muitas vezes as próprias jovens veem o casamento como sua única
oportunidade, especialmente as que deixaram a escola muito cedo.
Primavera Árabe
Para
a Human Rights Watch, o Iêmen deve estabelecer 18 anos como idade
mínima para o casamento, na tentativa de melhorar as oportunidades das
mulheres e proteger os direitos humanos. A campanha pelo limite de
idade, que dura décadas, ficou em segundo plano em 2011, durante os dez
meses de protestos pela renúncia do presidente Ali Abdullah Saleh.
"A
crise política do Iêmen deixou questões como o casamento infantil no
fim da lista de prioridades", afirmou Nadya, responsável pelo estudo.
"Agora chegou a hora de movimentar essa agenda, estabelecer 18 anos como
idade mínima para o casamento e garantir que as meninas e mulheres que
desempenharam papel fundamental nos protestos também possam contribuir
para o futuro do país".
A
participação feminina na revolta contra Saleh foi tão marcante que, em
abril, o presidente chegou a declarar que a presença de mulheres e
homens lado a lado nos protestos era algo "não islâmico" - provocando
ainda mais críticas. Em outubro, uma manifestação na capital Sanaa
reuniu centenas de iemenitas que queimaram seus véus em protesto à
violenta repressão promovida pelo governo.
"A
Primavera Árabe conseguiu remover estereótipos sobre as mulheres
árabes, porque elas realmente mostraram que são parte das revoltas
populares e das mudanças que estão varrendo a região", afirmou Nadya ao
iG.
No
próximo sábado, a ativista iemenita Tawakkol Karman receberá o Prêmio
Nobel da Paz, ao lado de duas liberianas, por sua defesa dos direitos
das mulheres. Em texto publicado em 2010, Tawakkol também defendeu o
limite mínimo de idade para o casamento e rejeitou a ideia de que tal
determinação iria contra a lei islâmica que rege o país.
Esse
foi o argumento usado pelo Parlamento para, em 1999, abolir o limite de
15 anos, anteriormente previsto por lei. Uma década depois, a maioria
dos políticos votou a favor de um limite de 17 anos, mas um grupo
conservador usou um procedimento parlamentar para atrasar o projeto de
lei indefinidamente, novamente citando razões religiosas.
Em
seu relatório, a Human Rights Watch contesta a ideia de que agir para
limitar o casamento infantil vai contra a lei islâmica, dizendo que
várias nações predominantemente muçulmanas, como Egito e Iraque, adotam
18 anos como idade mínima.
Fonte: IG
Nenhum comentário:
Postar um comentário