segunda-feira, dezembro 05, 2011

Onde estão os pais?

Aprendemos que a condição de pai ou a relação de parentesco que vincula pai a filho chama-se paternidade. A qualidade de pai, sabe-se que é a representação simbólica da geração, da posse, da dominação, do poder.  E mais: o pai é uma figura inibidora, castradora, nos termos da psicanálise; símbolo de toda e qualquer forma de autoridade, assim como chefe, patrão, protetor, professor, deus (cf. Chevalier e Gherrbrant, 1998, p. 678). Ele é origem. A nossa cultura lhe confere toda uma representação mítica. Se a mãe está ligada à matéria, o pai está ao espírito.

Paul Ricoeur – filósofo francês contemporâneo, falecido neste século – constata que a riqueza do símbolo paterno está diretamente ligada ao seu potencial de transcendência. E complementa: o pai figura na simbologia menos como genitor igual à mãe do que como aquele que dá as leis; fonte de instituição; segundo uma inversão habitual na simbologia, o pai das origens se transforma no deus que vem. (Ricoeur, 1966, p. 520)

O pensamento de Ricoeur assim se explica: para o pai a geração que supostamente lhe cabe produzir passa a ser sua regeneração, o nascimento, um novo nascimento, segundo todas as acepções analógicas do termo (...) não é somente o ser que alguém quer possuir ou ter, mas quer vir a ser, e de quem quer ter o mesmo valor. (cf. Chevalier e Gheerbrant, 1998, p. 678).

A mitologia nos conta que Cronos cortou os testículos de seu pai, Urano, fazendo com que perdesse o poder de gerar e se perpetuar. Mas temia ser acometido pelo mesmo golpe, e por isso, à medida que seus filhos nasciam, por ele eram engolidos. Cronos tem medo de ser pai e perder a divindade, tornando-se humano.

Jesus Cristo, segunda pessoa da Trindade, filho de Deus, concebido pelo Espírito Santo, tem José como pai adotivo. Narra a Bíblia que para salvar a humanidade Deus se fez homem por meio de seu filho, enviando-o à terra.  Investido de poderes divinos, tornou-se humano, a despeito de não gerar seus próprios descendentes. Seu pai não o devora, mas sendo Deus, transfere a José o exercício da paternidade. Cristo é com certeza o exemplo mais importante de filho adotivo que a história já registrou. Não cabe aqui a discussão se Deus é espírito e, como tal, necessitava de um pai materializado para seu filho; ainda que assim se justifique, demonstra que a paternidade é importante até para o filho de Deus, que mesmo onipresente, onisciente, onipotente é ausente, mas se pretendendo perfeito e justo, designa a José o desempenho da função de pai.

Édipo é também filho adotivo. Laio, seu pai biológico, não o adota. Ao contrário, temendo a profecia de um oráculo, manda abandoná-lo à mercê de sua própria sorte. Pólipo é quem permite que ele nasça efetivamente, e é para Édipo o nome do pai e o pai do nome.

A questão que aqui se coloca é a da paternidade e do seu entorno. Mais que isso, a ausência dela e suas consequências. Sabe-se que as varas de Família em todo o país estão abarrotadas de processos intermináveis. Creiam: a maior parte desses procedimentos está de uma forma ou outra ligada à pensão alimentícia, seu pagamento descuidado ou a negligência com o filho, de prover suas necessidades físicas, materiais e afetivas. Esse descompasso é um desafio para todos nós operadores do direito, pois a paternidade se constrói em diferentes contextos sociais, históricos, afetivos, econômicos, por diversificados discursos e práticas.

Essa questão é essencial para dar ao Brasil a dignidade merecida. E como fazer? Comprando carros com ar-condicionado e fechando as janelas? Constituindo a elite da miséria com o minguado e desconstrutivo Bolsa-Família? Internando as crianças em abrigos e reformatórios, onde serão maltratadas, seviciadas? Prendendo os devedores de alimentos?

Ora, prender o devedor da pensão alimentícia faz sentido quando se tem do outro lado um Romário ou um Kadu Moliterno. Mas deixar atrás das grades o flanelinha, o pedreiro ou o comerciante também não é medida produtiva.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco inovou ao mandar para os órgãos de proteção ao crédito o nome daqueles que não cumprem seus deveres paternos. É uma saída interessante. Mas também não resolve o problema, pois a maioria desses pais nem nome tem para ser negativado. São filhos de iguais, com quem aprenderam o abandono. Já o tribunal mineiro criou o Projeto de Conciliação, eficaz em parte, pois ali os acordos são feitos na Central de Conciliação, mas não se cumprem efetivamente, voltando o requerente às portas do Poder Judiciário e vindo a litigar mais uma vez.

 A consequência efetiva do descaso do exercício da paternidade traz consigo problemas infindáveis, que se repetem sucessivamente. Nos dias atuais, não somente os pais abandonam aos seus filhos, também as mães, o Estado e a sociedade. É preciso pensar essa renúncia e ceder ao desejo de procriar. Esse abandono é o modelo das gerações futuras, e ao repetí-lo causaremos estranheza a nós mesmos, pois assim não nos reconhecemos, tampouco a nosso semelhante; não nos respeitamos; não cuidamos da casa (terra) que nos abriga, nem do lar (família) que nos distingue.  Mergulhados no excesso, emergimos para a nossa própria escassez.

 E aí, pergunta-se: se a figura paterna é desde sempre conhecida como forte, poderosa, viril, muitas vezes inquebrantável, se é a lei – permite e proíbe –, a proteção – cuida e provê –, a transcendência – gera e conhece –, onde estão os pais brasileiros?

 E se constata no Poetinha: Filhos? Melhor não tê-los.

Fonte: Jornal Estado de Minas
 

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