Benjamin Constant (AM), Tabatinga (AM) e São Miguel do Iguaçu (PR)
— Índios paraguaios, colombianos e peruanos não preenchem um requisito
básico para receber o principal programa social do governo, o Bolsa
Família: ser brasileiro. Mas, diante da frágil estrutura da Fundação
Nacional do Índio (Funai), burlam a legislação e se nacionalizam
rapidamente, ficando aptos a ganhar o benefício mensal. O Correio
Braziliense/Estado de Minas percorreram aldeias nas fronteiras das
regiões Sul e Norte do Brasil e detalham como funciona a fraude. A
nacionalização — que, além do recebimento do Bolsa Família, almeja a
aposentadoria especial para trabalhador rural e o auxílio-maternidade — é
possível graças ao Registro Administrativo de Nascimento Indígena
(Rani), uma Certidão de Nascimento especial para os índios. No
documento, reconhecido por um funcionário da Funai e assinado por duas
testemunhas — quase sempre indígenas da aldeia em que o estrangeiro
chega —, fica registrado que o migrante nasceu em território brasileiro.
Com
o Rani em mãos, o índio estrangeiro vai ao cartório de registro civil e
consegue a Certidão de Nascimento tradicional. A partir daí, todos os
documentos se tornam possíveis: Carteira de Identidade, CPF e título de
eleitor. A maneira convencional de nacionalização exige que o índio more
no país por pelo menos cinco anos e uma série de documentos que provem o
vínculo com o Brasil.
Na
aldeia Bom Caminho, em Benjamin Constant, no extremo oeste do Amazonas,
na fronteira com o Peru e a Colômbia, 20 famílias de índios peruanos e
colombianos integram a comunidade com pouco mais de 800 índios Ticunas. O
cacique Américo Ferreira detalha como os índios passam a receber os
benefícios: “Tiramos o documento (Rani) dos pais primeiro e, depois, os
dos filhos”.
A
família do casal peruano Ortega Pereira Torres e Jurandina Parente Adan
está entre os beneficiados. Jurandina diz que os R$ 166 do Bolsa
Família são fundamentais para a sobrevivência. O casal tem seis filhos
e, sem o dinheiro dado pelo governo brasileiro, não poderia comprar
itens de sobrevivência. O rápido processo de nacionalização foi
conseguido graças ao Rani forjado.
No
sul do Brasil, na aldeia Ocoy (PR), a realidade não é diferente. O
cacique Daniel Maraka Lopes diz que quase a metade do habitantes é do
Paraguai. Mas a origem não impede que os estrangeiros recebam o
benefício. “Quem não tem o documento brasileiro está fazendo de tudo
para conseguir”, conta. É o caso de Eugênio Ocampo e Silvina Benitez.
Com seis filhos, eles recebem mensalmente R$ 230 do Bolsa Família. Desde
que saíram do Paraguai, vivem em uma casa simples na fronteira com o
país natal. Ambos falam muito pouco o português, se comunicam em
guarani.
Sem soluçãoAs
esferas públicas envolvidas com a questão indígena nas regiões de
fronteira conhecem o golpe, mas alegam ter dificuldade para combatê-lo. O
coordenador de proteção social da Funai, Francisco Oliveira de Souza,
tenta minimizar as fraudes dizendo que o critério da etnia é feito pelo
reconhecimento dos pares. “Se há desvio, é com a conivência dos
indígenas da comunidade”, acusa. Souza faz uma digressão histórica e
explica que o fato de um indígena nascer em um país vizinho não é
relevante para a etnia. “Os limites internacionais foram marcados pelos
brancos”, ressalta. Além disso, segundo ele, muitos índios não sabem
precisar em qual lado da fronteira estão. A Funai estuda uma forma de
diminuir as fraudes, mesmo não considerando o golpe abrangente.
“Queremos formar um banco de dados com todos os registros indígenas.”
Em
nota, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
informa que “se o cidadão está documentado como residente no território
nacional e preenche todos os requisitos para ser incluído no Cadastro
Único e sendo a documentação autêntica, o gestor municipal não pode
negar o cadastramento e o MDS não pode impedir que ele seja selecionado
como beneficiário do Bolsa Família”.
Responsável
pelo cartório do segundo ofício de Tabatinga e pelo de primeiro ofício
de Benjamin Constant, Abdias Pereira de Oliveira explica que os índios
fraudadores alegam falar somente a língua do seu povo — no caso, a
ticuna — e contam com um tradutor, que atua sabendo do golpe, para
conversar com o tabelião. “O Brasil tem tudo: saúde, educação,
aposentadoria e um monte de benefício. Por isso, eles ficam tentando se
passar por brasileiros. Quando percebo, não faço a certidão e levo o
caso para a Justiça”, explica. Recentemente, o cartório fez uma campanha
de registro e expediu a documentação para 1,5 mil índios. “Visitei 19
comunidades afastadas e vi apenas um posto da Funai. Não tem como o
funcionário do cartório conhecer tudo. O registro é feito na base da
palavra”, detalha o tabelião. Em Tabatinga, mais de 2 mil índios recebem
o Bolsa Família, o que corresponde a quase metade dos beneficiados na
cidade: 4.148.
Professor
da Universidade Estadual do Amazonas, Sebastião Rocha de Souza percebe
modificações com o aumento dos benefícios para os índios. “Eles
começaram a exercer a cidadania, mas também adquiriram o vício de ficar
esperando a ajuda chegar”, pondera. De acordo com ele, índios deixaram
de pescar, fazer artesanato e até de se dedicar à agricultura, contando
exclusivamente com o amparo do governo. “Muitas passaram a fazer questão
de engravidar para conseguir o dinheiro do auxílio-maternidade”,
lamenta o educador.
Inquéritos na PFO
delegado da Polícia Federal de Tabatinga, Gustavo Pivoto, entende que
falta um controle maior dos órgãos do governo federal, principalmente da
Funai. Na delegacia regional, existem diversos inquéritos que
investigam falsificações de documentos realizadas pelos índios da
região, segundo ele. “Tem indígena responsável pelo cadastro que quer se
eximir da responsabilidade”, lamenta.
Sapatos, cadernos e drogasCreuza
Santiago Jaguari está grávida do nono filho. O marido dela, Reginaldo
Guilherme Cordeiro, faz planos do que comprar com os seis meses de
salário mínimo referentes ao auxílio-maternidade. “Um computador para
ajudar os meninos na escola”, vislumbra. Com o dinheiro que recebeu dos
outros filhos, ele já adquiriu um motor de barco e um freezer. O mais
novo dos meninos do casal tem dois anos e o mais velho, 17. A família
recebe R$ 231 de Bolsa Família mensalmente. “Compro lápis, caderno,
borracha e, quando sobra um pouco, uso para comprar comida”, afirma
Creuza.
São
índios Ticunas e moram na aldeia de Umariaçu, em Tabatinga (AM). Com
quase 6 mil habitantes, o local é semelhante a um bairro humilde de uma
cidade grande, com casas de alvenaria sem acabamento que se juntam a
outras de madeira. O trânsito frequente de motocicletas e até
residências funcionando como lan houses mostram que mudou muito o
cotidiano dos índios do século 21.
No
fim do mês passado, a Polícia Federal (PF) prendeu, na aldeia, dois
colombianos com diversas armas e munições de grosso calibre. O arsenal
era composto por lançador de granada, mais de uma dezena de granadas e
fuzis de fabricação belga, sendo um deles com o emblema do Exército
peruano. Havia também submetralhadora .40 e centenas de munições.
De
acordo com a PF, os presos trabalhavam para o peruano Jair Ardela
Michue, um dos maiores traficantes da tríplice fronteira, preso em março
deste ano. Um dia depois, mais armamento foi encontrado em Belém do
Solimões, outra aldeia indígena ticuna. O delegado da PF de Tabatinga,
Gustavo Pivoto, afirma que o aliciamento de indígenas por organizações
criminosas é intenso na região. Índios são usados para transportar
drogas e armas e despistar a ação da polícia. O atrativo é sempre o
mesmo: dinheiro. “O indígena está contaminado com os valores dos que não
são indígenas”, avalia o professor da Universidade Estadual do Amazonas
Sebastião Rocha de Souza, que faz parte da coordenação que prepara
professores indígenas do Alto Solimões. (DC).
Fonte: Jornal Correio Braziliense
Nenhum comentário:
Postar um comentário